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Entre Midas e Medusas - Renato Kress

"O mito é o nada que é tudo" - Fernando Pessoa


Ouvir histórias mexe conosco. Por isso sentamos para ler um livro, nos almofadamos no escuro do cinema, pagamos tv por assinatura ou sentamos numa mesa de bar com amigos a espera das novidades. O grande barato do estudo dos mitos é que ele segue por esse caminho, mas atinge algo mais íntimo, enlaça e captura uma parte mais profunda e vasta do espírito humano. Fala daquilo que é inesgotável em nós.


Quando recebi o convite do querido amigo Luís Paulo Lopes para escrever essa coluna mensal só consegui pensar no que o mito gera, no que ele gerou para mim nesses mais de dez anos trabalhando com essa linguagem.


Dois tabus

Na nossa sociedade acelerada, com estímulos escorregadios nos levando pela mão de ideia em ideia, sensação em sensação, propaganda em propaganda, gerando uma vertigem dos significados que se diluem só para se congregar em consumos fátuos, fui percebendo que o mito, a estrutura da narrativa mitológica, tem algo de especial: ela prende. Ela nos faz transgredir dois grandes tabus da nossa era: parar e pensar.


Parar O mito é polissêmico. Palavrinha bonita que quer dizer que o mito é prenhe, cheio, repleto de significados. Não é uma narrativa científica aos moldes circunscritos e deterministas dos que têm preguiça e querem a resposta fácil pré-digerida. Não! O mito é de um incômodo especial para aqueles que querem definições e restrições. Ele não "é", ele está sempre aberto a novas leituras, ao "pode ser". Os filósofos dirão que o mito está no campo do devir.


Mito empresarial Lembro de quando trabalhava em multinacionais e o discurso laboral - o "mito" deles - martelava diariamente o dogma inquestionável: se você não está na "zona de ação", está na "zona de conforto". Queriam associar ação a produtividade e pertencimento - até a salvação individual do sujeito lá, em dupla ou tripla jornada "vestindo a camisa da empresa" - e, é claro, queriam associar pensamento a culpa.

Parar, especificamente parar para pensar, era algo "confortável" pelo qual você deveria internalizar uma profunda culpa. A não ser que você estivesse consumindo, consumir no "descanso" é louvável, quase sinal de eleição divina! Parar é um tabu da sociedade do cansaço (sociedade da exaustão, sociedade da euforia ou qualquer nome semelhante que nos alargue o espectro de percepção sobre a loucura cotidiana). Até seu ócio tem que ser criativo, percebe? Mas adoramos o poder da desobediência. Parar é deliciosa transgressão, a culpa pecaminosa que o mito nos proporciona diante do imperativo da produtividade eterna, do dilema entre o "burnout" e a depressão.

Pensar Enquanto eu conto um mito alguém se prende no detalhe de uma expressão, outro no momento específico da fala de um personagem, no pano de fundo ou objeto cênico ou outra pessoa calcula, ainda, as motivações duvidosas das personagens em cena. Cada pessoa presente gira seu foco para um ponto da narrativa, cada uma defende com unhas e dentes, depois, o que entendeu que Ártemis, Dioniso ou Helena quiseram dizer, fazer etc.

O mito é um tipo muito específico de narrativa que está aberta o suficiente para que nós projetemos nossos próprios significados nela. Ele nos toca e, quando vemos, estamos falando sobre ele. Na verdade com aspas: "sobre ele". Porque de fato quando eu falo de Hera ou de Zeus, falo da minha leitura deles e não deles em si. Falo sobre como eu os vejo e a forma como os vejo denuncia quem sou e onde estou.

As verdades do mito

Nem eu nem você descortinamos a "Verdade" do mito - essa daí estará para sempre entreaberta, na meia-luz da consciência - na verdade nós falamos de nós mesmos através do mito.


Entre Midas e Medusas Quando Luís Paulo Lopes me chamou para escrever essa coluna uma das primeiras coisas que pensei foi o nome. Ele veio num estalo! Só depois elaborei uma justificativa para o que me brotou: "entre Midas e Medusas".

Talvez porque eu tenha visto uma charge de um encontro entre essas duas figuras, onde uma segurava a mão da outra e Midas se empedrava enquanto Medusa virava ouro (e eu ria).

Mas quem foram esses? Vou resumir aqui porque teremos tempo para mitos nos próximos artigos, mas Midas foi um rei que, por cuidar bem de um dos participantes do séquito de Dioniso que havia se perdido, ganhou do deus do êxtase o presente de transformar tudo o que tocasse em puro ouro. Presente maravilhoso, não?! Até ele tentar dar uma mordida num pernil e quase quebrar os dentes. Medusa? Bem, o próprio Hesíodo tem duas versões para a origem dela, numa era desde sempre uma das górgonas, mulheres serpentiformes com asas de ouro e garras de bronze, cobras na cabeça e que transformavam em pedra tudo o que cruzasse olhares com elas. Na outra versão ela havia sido uma sacerdotisa de Atená que havia sido punida pela deusa por se deitar no templo com seu tio Posidon, sendo transformada em uma das górgonas por isso. As duas versões estão no mesmo livro: Teogonia. Escolha a que preferir!

Seja como for, o domínio do mito pende na corda bamba entre Midas e Medusa, entre fascínio e horror! Ou entre horror e fascínio, porque no momento em que você pensou que Midas era o horror e Medusa o fascínio - ou o oposto - você já começou a perceber o potencial do mito para responder duas das maiores questões das nossas vidas: Quem sou eu e onde estou?


Sejam bem vindos ao Lampeju e à coluna "Entre Midas e Medusas".



Renato Kress é carioca, antropólogo, cientista político, especialista em psicologia analítica e apaixonado por mitologias, sistemas de crenças e religiões.

@instituto_atena

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