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Foto do escritorLuís Paulo Lopes

O Mito Pessoal de Jung: Sophia, o Demiurgo e os Sete Sermões aos Mortos


Trecho do prefácio de Lance S. Owens para o livro de Alfred Ribi, The Search for Roots: C. G. Jung and the Tradition of Gnosis [A busca pelas raízes: C. G. Jung e a Tradição da Gnose], sem tradução oficial para o português. Em tradução livre por Lampeju.


Os [*] que se encontram no texto, são transcrições de notas de rodapé ou trechos de notas de rodapé traduzidas do texto original; já os [] são observações do tradutor para melhor esclarecimento do conteúdo do texto.


Sophia, o Demiurgo e os Sete Sermões aos Mortos


A edição publicada do Liber Novus inclui três apêndices, fornecidos como uma parte integrante do aparato editorial elaborado por Sonu Shamdasani. Cada apêndice oferece um vislumbre sobre os relatos dos cadernos de Jung [publicados posteriormente como os Livros Negros]. São indispensáveis para a compreensão da estrutura mítica na base das seções do Liber Novus compostas depois de 1915 - os meses em que Jung confrontou suas raízes na tradição gnóstica [Referência aos Sete Sermões aos Mortos].


O primeiro suplemento, Apêndice A, mostra a cópia [facsimile] de uma página do Livro Negro 5, onde Jung esquematizou cuidadosamente sua primeira “mandala” simbólica, o Systema Munditotius. Aparentemente elaborado por volta do meio de Janeiro de 1916, o desenho de Jung deve ser mais adequadamente descrito não como uma mandala - um termo que Jung só utilizaria muitos anos mais tarde - mas uma angeologia gnóstica. Essa figura simbólica complexa seria interpretada duas semanas depois no texto escrito por Jung chamado Sete Sermões aos Mortos - Jung o endereçou à horda de Anabatistas mortos que haviam retornado de Jerusalém e tocaram sua campainha no fim de Janeiro de 1916.


O terceiro suplemento, Apêndice C, novamente reproduz o Livro Negro 5; esta abertura está datada em 16 de Janeiro de 1916. É um texto surpreendente onde a voz feminina da alma de Jung revela para ele uma história que seria reconhecida por qualquer estudante do gnosticismo como o mito fundador da tradição, o mito de Sophia e o Demiurgo.


Na mitologia gnóstica clássica, Sophia (Sabedoria) era um Aeon feminino, um arquétipo gêmeo ou sizígia do Logos masculino. Ela é o aspecto feminino da divindade que habita o interior da criação. Assim como a anima mundi dos mitos alquímicos, Sophia está presente no interior da própria trama do cosmos e da consciência. No drama gnóstico da criação, uma emanação abortiva separou-se de Sophia logo após ela mergulhar nas profundezas do cosmos em criação. Esta criança defeituosa cresceu, tornando-se uma força cósmica ardente que falsamente se auto proclamou como a singular e suprema divindade. Como autodeclarado governante do mundo material, ele escravizou a humanidade. Este era o demiurgo. Os mitos gnósticos deram a ele muitos nomes distintos, como Saklas e Yaldabaoth; Jung o chamou de Abraxas. Neste antigo e muitas vezes reafirmado mito gnóstico, Sophia era a oponente do demiurgo. Ela era o poder superior que despertava no homem o conhecimento sobre sua origem e luz interior intrínseca, e assim o libertava do traiçoeiro domínio mundano do demiurgo. Deste modo, é sugerido que Jung não havia compreendido o âmago da mitologia gnóstica, e que os Sermões não eram um verdadeiro exemplar de um mitologema gnóstico [pois a identificação do Abraxas de Jung com o demiurgo gnóstico não era tão clara]. Entretanto, agora é claro que esta crítica equivocada é resultado de uma má interpretação e de uma má compreensão da figura complexa de Abraxas, que aparece no segundo sermão dos Septem Sermones.


A abertura do diário de Jung datada de 16 de Janeiro de 1916, reproduzida como Apêndice C do Liber Novus, remove qualquer dúvida sobre este assunto: Abraxas era o demiurgo no mito de Jung. Nesta abertura, Jung registrou as seguintes palavras faladas para ele pela Alma, que assumiu a voz de Sophia. Sua origem é indiscutivelmente uma versão do mito gnóstico primordial do demiurgo, aqui chamado Abraxas:


“Você deve adorar somente um único Deus [referência ao Deus Único, abordado em seguida]. Os outros deuses não são importantes. Abraxas deve ser temido. Por isso, foi uma libertação quando ele se separou de mim” [Liber Novus, Apêndice C / Obs: na tradução em português, "separou" foi traduzido como "se afastou", o que prejudica a compreensão].


Perceba que a Alma está assumindo a voz de Sophia. A separação do demiurgo a partir de Sophia - “quando ele se separou de mim” - é uma parte chave do mito gnóstico. Ela continua,


“Você não precisa procurar por ele [Abraxas]. Ele vai encontrá-lo, assim como Eros. Ele é o deus do cosmos, extremamente poderoso e terrível. Ele é o impulso criador, é forma e formação, tanto matéria quanto força, portanto está sobre todos os deuses claros e escuros. Ele arrebata as almas e as lança na procriação. Ele é criador e criado. Ele é o deus que se renova sempre, no dia, no mês, no ano, na vida humana, na época, nos povos, no vivente, nos corpos celestiais. Ele se impõe, ele é implacável. Se você o cultuar, aumentará seu poder sobre você. E assim, ele se tornará insuportável. Você terá um terrível problema para se livrar dele. … Então, lembre-se dele, não o cultue, mas não pense que pode fugir dele, pois ele está em volta de ti. Você deve estar no meio da vida, cercado pela morte por todos os lados. Estendido como um crucificado, dependurado nele, o terrível, o suprapoderoso.

Mas, há dentro de você o Deus único, o maravilhosamente belo e gentil, o solitário, como uma estrela, imóvel, ele que é mais velho e sábio do que o pai, ele que tem uma mão segura, que o guia através de toda escuridão e em todos os temores mortais do terrível Abraxas” [*Liber Novus].


Esta abertura do diário identifica com precisão a figura de Abraxas, que a partir daí aparece nos Sermões, como o demiurgo da mitologia gnóstica clássica. A identificação de Abraxas como o demiurgo é, mais adiante, estabelecida no manuscrito do Liber Novus, já que em sua transcrição, Jung substitui o termo “governante deste mundo” pelo nome “Abraxas” originalmente escrito no seu diário [Livros Negros].


Jung reconheceu a precedência gnóstica deste fato em uma aparição ocorrida em Janeiro de 1916. Uma voz Sophiânica proclamou para ele a afirmação gnóstica fundamental: “há dentro de você o Deus único, o maravilhosamente belo e gentil, o solitário, como uma estrela, imóvel”. Jung se virou para esta estrela, e ela se tornou o guia de sua vida.


Dois anos após o início da jornada do Liber Novus, Jung estava agora submetendo sua experiência visionária a uma interpretação impregnada pela sua leitura da mitologia gnóstica. Na entrada de seu diário em Janeiro de 1916, a Alma fala com ele através do vocabulário do mito gnóstico; duas semanas depois, o mesmo vocabulário aparece na formulação inicial dos Sete Sermões aos Mortos. No verão de 1916, seu guia Philemon é revelado como sendo Simão, o Mago. O mito de Jung [finalmente] encontrou seu rizoma, e ele sabia disso.


É claro, deve-se notar que a declaração básica do demiurgo já havia surgido em outra forma bem no início do Liber Novus. Jung finalizou a parte do texto manuscrito e a versão caligráfica final do Livro Vermelho mais cedo, em 1915. No prefácio, ele escreveu nas primeiras páginas do Liber Primus [Primeiro capítulo do Livro Vermelho], sobre seu confronto com dois poderes: o “espírito da época”, e o "espírito das profundezas”. O “espírito da época” sem dúvidas se manifesta como um demiurgo, declarando - do modo típico do demiurgo gnóstico - que não há outro poder além dele [*“O espírito da época gostaria de fazer você acreditar que as profundezas não fazem parte do mundo e não são reais”. Liber Novus]. O “espírito das profundezas” recusa a pretensão de soberania do demiurgo, e incita Jung a olhar para além de suas [do demiurgo] ilusões. O que Jung descobre e registra dois anos depois, em 1916, não é um tema novo. Ao invés disso, trata-se de uma metamorfose da voz, vocabulário e da identificação mitológica de seu guia: em 1916, a mitologia gnóstica tornou-se um recipiente simbólico para expressão de suas visões.


Em 1916, Jung aparentemente encontrou a raiz de seu mito pessoal e este era o mito da gnose. Não vejo nenhuma evidência de que isto tenha mudado em algum outro momento. Ao longo dos próximos quatro anos, ele se dedicou a construir uma leitura interpretativa sobre o curso oculto da tradição gnóstica ao longo do aeon cristão: no Hermetismo, alquimia, Kabbalah, e misticismo cristão. Neste vasto empreendimento hermenêutico, Jung foi construindo uma ponte através do tempo, levando até a pedra fundamental do gnosticismo clássico. A ponte que leva adiante, em direção a um novo Aeon [uma nova era] foi fundada sobre a pedra rejeitada pelos construtores há dois mil anos atrás.


Lance S. Owens

(Tradução livre por Lampeju)

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