“A frase “tomar refúgio” é emprestada de seu contexto tradicional - a declaração budista, tantas vezes repetida, da fé nos professores, nos ensinamentos e na comunidade espiritual (...) - para indicar que tomar refúgio em prazeres momentâneos, transitórios, é algo que fazemos o tempo todo com um furor e convicção quase religiosos (...).
Quando o Budismo fala de tomar refúgio é para enfatizar a importância de romper com essa busca desesperada e insuficiente pela satisfação.” (Lama Yeshe - Introdução ao Tantra)
“Verdadeiramente, não gozamos de qualquer liberdade sem dono, mas nos achamos continuamente ameaçados por certos fatores psíquicos capazes de nos dominar sob a forma de “fatos naturais”. (...) Sempre existiram “domínios” e “poderes”, e não nos compete criá-los, nem precisamos fazê-lo. A única tarefa que nos cabe é escolher o “senhor” a quem desejamos servir, para que esse serviço nos proteja contra o domínio dos “outros”, que não escolhemos. “Deus” não é criado, mas escolhido.” (C.G. Jung - Psicologia e Religião)
A temática do texto de hoje, dialogando a psicologia analítica com o pouco de que sei do budismo, circula em torno do tema refúgio. Escolhi a dedo estes dois trechos, o primeiro sendo do Lama Yeshe (1935-1984), representando a perspectiva do budismo tibetano, o segundo já do Jung, em sua excelente obra Psicologia e Religião. Para início das nossas reflexões, vale o esclarecimento de como essas duas visões se aproximam, na minha perspectiva.
Começando por Jung, o que ele quer dizer com todos esses termos? “Fatores psíquicos”, “domínios e poderes”, “fatos naturais”, esse “Deus” entre aspas, todos dizem respeito, no trecho citado, à nossa dinâmica interior, ou seja, Jung está nos falando das potências que nos colocam em movimento na vida. Falar de fatores psíquicos em psicologia é falar de tudo aquilo que produz efeito em nossa psique e mobiliza a nossa energia, geralmente de maneira específica e tendenciosa, obedecendo a certas leis e com uma finalidade definida. Explicar a quais leis obedece toda esta movimentação exigiria expor toda a complexa e bem elaborada fundamentação da psicodinâmica proposta por Jung, o que seria uma tarefa impossível para os propósitos um tanto mais modestos desta coluna, portanto não o farei. Ao leitor mais familiarizado com a obra junguiana, indico a leitura dos livros do volume oito das obras completas para aprofundamento neste aspecto da teoria. O ponto principal para nós, aqui nesta reflexão, é chegarmos à compreensão de que tanto Jung quanto Lama Yeshe estão falando de nossa movimentação psíquica e de qual direção tomamos em nossas ações cotidianas, hábitos e decisões.
O lama tibetano, da perspectiva budista, utiliza, como é comum em sua tradição, o termo refúgio, que aos olhos junguianos já nos apresenta uma imagem: se há um refúgio, então há necessariamente algo do qual se deva fugir, algo que certamente é ameaçador, pois, se assim não fosse, não haveria necessidade da fuga, da busca por proteção e segurança. Que fantasmas assustadores são esses que nos fazem querer fugir? Da perspectiva da psicologia analítica, são esses outros poderes que estão vivos dentro de nós, os “outros senhores” que Jung menciona, que ameaçam nos dominar, nos desencaminhar, subjugar nossa vontade, fazer-nos seus servos e nos arremessar em uma direção que nos é estranha. Na psicopatologia é onde fica mais evidente a presença e forte atuação destes outros poderes, mas na realidade nem precisamos ir tão longe, pois nós mesmos em nossas vidas cotidianas somos atravessados por estes muitas vezes sem nos darmos conta, achando ingenuamente que tudo o que ocorre do lado de dentro pertence a este pequeno e limitado eu. Um dos caminhos para conseguir começar a ter a percepção destes “outros internos” é prestar atenção às nossas reações emocionais aos eventos cotidianos e nas relações com aqueles que nos são próximos. Já é um bom começo.
A psique não é boazinha, disse certa vez a minha primeira terapeuta, então é evidente que para o ego, sendo ele uma pequena ilha no oceano da psique, há uma necessidade constitutiva de refúgio contra os perigos psíquicos. Assim sendo, não acho exagerado chegarmos à conclusão de que, querendo ou não, teremos um refúgio (ou vários refúgios), portanto o desafio que nos é colocado é decidir, dentro do que nos é possível, qual será o nosso refúgio. Com grande senso de humor, Lama Yeshe faz uma crítica e explica a natureza do que ele em outro momento da mesma obra denomina de falso refúgio, que é o refúgio nos prazeres transitórios:
“Podemos pensar um dia, por exemplo, “Oh, estou tão deprimida, acho que vou à praia” e assim pegamos o carro e vamos até o mar, pulamos na água, brincamos como peixes e depois nos deitamos para fritar ao sol. Quando isso se torna entediante, pensamos, “Agora, estou com fome, onde fica a lanchonete?” Aí, nos empanturramos de coisas como sorvete, pipoca, refrigerante e chocolate, esperando encontrar neles alguma satisfação. Refugiamo-nos nessas coisas como saída para nossa depressão ou tédio, mas acabamos gordos e queimados”
(foto: Lama Yeshe)
Inicialmente nos parece até um ponto de vista comum das religiões, de alguma forma sempre criticando os prazeres sensoriais e enaltecendo outros aspectos considerados superiores na experiência humana, entretanto, a chave para a compreensão da crítica de Lama Yeshe a este tipo de refúgio se dá no fato de que não são as atividades em si aquilo que ele realmente está criticando, mas a dinâmica psíquica dentro da qual o sujeito está inserido, que o leva constantemente a uma busca de caráter material por um objeto de refúgio, um “senhor” que possa o salvaguardar de suas terríveis aflições. No imaginário monoteísta, por exemplo, poderíamos pensar na figura do bezerro de ouro, presente no antigo testamento como representante simbólico desta mesma atitude psíquica, lá denominada de idolatria.
Ainda na mesma anedota está implícita também uma crítica à cosmovisão materialista, dentro da qual estamos profundamente mergulhados em nossa época, já que a maioria de nós, em maior ou menor grau, busca a compensação material como o meio mais fácil e imediato de lidar com as aflições mentais (kleshas, na tradição budista). Nesse ponto, Jung e Lama Yeshe estão inteiramente em concordância, pois Jung também é um grande crítico do materialismo, apesar de partir de uma base argumentativa diferente. Um bom trecho que explicita de maneira sintética a sua perspectiva é o seguinte:
“A psique só não está onde uma inteligência míope a procura. Ela existe, embora não sob uma forma física. É um preconceito quase ridículo a suposição de que a existência só pode ser de natureza corpórea. Na realidade, a única forma de existência de que temos conhecimento imediato é a psíquica. Poderíamos igualmente dizer que a existência física é pura dedução uma vez que só temos alguma noção da matéria através de imagens psíquicas, transmitidas pelos sentidos.” (C.G. Jung – Psicologia e Religião)
Voltando ao eixo central de nosso texto, a expressão “tomar refúgio”, se tratando agora do verdadeiro refúgio, no contexto budista, tem um valor semelhante, ao meu ver, a uma outra expressão bastante cara à Jung: metanoia. A entrada formal do sujeito na senda espiritual do budismo tibetano se dá pelas vias da tomada de refúgio, o que certamente é um divisor de águas na vida do mesmo. Do outro lado, a ideia de metanoia, considerada no contexto junguiano, fala também de um momento de virada na vida de alguém, de um processo de transformação total da personalidade que renova verdadeiramente a vida do sujeito que por ele atravessa. Um dos significados de metanoia é conversão, o que é bastante importante de um ponto de vista psicológico pois, diferentemente da adesão a um conjunto de valores e crenças específicos, como é comum em conversões de natureza religiosa, a “conversão” que aqui ocorre é uma mudança na orientação geral da consciência do sujeito, passando a agir no mundo dentro de uma outra perspectiva, com outra atitude diante de si e do mundo ao seu redor. Nesse sentido, é uma renovação também na cosmovisão do indivíduo, o que não é pouca coisa, mas provavelmente um dos processos mais importantes a serem vividos nesta nossa trajetória pela vida. A questão se as conversões religiosas representam autênticos processos psíquicos de transformação ou não é impossível de ser respondida de forma generalizada, pois o que para alguns é a salvação, para outros, certamente não é.
É muito importante considerar estes aspectos todos podendo observar processos de transformação concretos, privilégio que nós psicoterapeutas temos pela natureza de nosso ofício, pois se estamos falando de refúgio, e se paramos verdadeiramente para nos perguntar no momento presente qual é o nosso refúgio, começamos a enxergar provavelmente refúgios indesejáveis que frequentemente adotamos, escolhas que fazemos por hábito que nos trazem consequências indesejáveis e, um passo de cada vez, vamos trilhando uma via de autoconhecimento que em algum momento pode ser que até mesmo venha a desaguar nos rios da metanoia. Acho que primeiramente, nessa caminhada, é importante nos observarmos com algum grau de objetividade, só que tal tarefa é de uma dificuldade muito grande e não se trata de uma mera decisão da pessoa, tomada da noite pro dia, mas de uma conquista que geralmente leva tempo e demanda esforço contínuo e ininterrupto, tão longo quanto durar a vida, pois a perspectiva egoica (bem como a dos demais complexos) é muito tendenciosa e convincente, nos colocando para enxergar sempre o que gostaríamos de enxergar, deixando de lado toda a sombra (como já tratei em outro texto). É necessário também reconhecer que nossa capacidade de auto-observação é algo que vai se ampliando aos poucos, e que a natureza tem um ritmo muito diferente do que gostariam as nossas pretensões e fantasias de realização interior.
O que há em comum entre o budista tradicional que toma refúgio sincero e autêntico e a pessoa não-religiosa que busca de verdade se conhecer, seja pelas vias da psicoterapia ou por outras, é o compromisso com a verdade, o refúgio na verdade, se assim podemos dizer. Que verdade é essa? A verdade de quem se é verdadeiramente, não as faces das máscaras que assumimos e com as quais nos iludimos. Do compromisso visceral com essa verdade surge na consciência uma postura de maior firmeza de propósito e algum grau de estabilidade na busca pelo conhecimento de si, mesmo que esta última seja necessariamente uma caminhada repleta de vacilos e momentos de perda de tal compromisso. ”Precisamos saber qual é a verdade para nela nos refugiarmos?” poderíamos nos questionar. Aqui, no entanto, vale a ressalva de que a verdade de que eu digo não se trata de algo que possa ser formulado verbalmente, pois não é algo estático. Não se trata de um dogma ou de uma verdade filosófica, pois no momento em que eu tento encaixá-la nos moldes da palavra, eu já a perdi. Individualmente ela vai sendo expressa pelos símbolos e imagens trazidos pelo inconsciente, num contexto de análise, nunca sendo esgotada pelas tentativas de explicação racional, mas apresentando a cada momento outras faces de si própria, desvelando sua própria ordem ao sujeito à ela subordinado.
Esta verdade é simplesmente quem nós somos em nosso devir; quem somos enquanto caminhamos e vamos nos transformando. Quando Jung diz que sua vida é a história de um inconsciente que se realizou é isso que ele está falando que foi realizado: sua verdade mais íntima. Na senda do autoconhecimento estamos sempre buscando trazer ao mundo a melhor expressão da nossa identidade verdadeira, de nossa totalidade. Jung cunhou o termo Self para nomear isso que eu chamei aqui de verdade e de identidade verdadeira, por abranger a totalidade psíquica do indivíduo.
Para encerrarmos as reflexões aqui propostas, o que se pode observar é que os falsos refúgios vão caindo por terra e perdendo sua potência (embora nunca deixando de existir) quanto mais vamos nos conhecendo e nos desemaranhando de nossas neuroses e da teia de nossos complexos, integrando progressivamente em nossas vidas as partes perdidas de quem nós somos, antes mergulhadas no inconsciente, de maneira a ampliar cada vez mais o escopo de nossa personalidade, tornando-nos capazes de agir no mundo com um grau um pouco mais elevado de lucidez e sanidade. Mas todo esse processo requer o comprometimento consciente, não se tratando de algo que passivamente possa ocorrer com facilidade. É algo que demanda do indivíduo uma postura de abertura e receptividade, por um lado, e de ação enérgica, por outro, diante daquilo que surge de seu inconsciente.
Se encontramos no céu noturno e nebuloso do nosso turbulento mundo interior o brilho de uma estrela que nos sirva de refúgio e norte para a nossa caminhada, que possamos ter a necessária firmeza no compromisso de nos apegarmos a ela como guia verdadeira, ainda que não a conheçamos tão bem nem consigamos vislumbrar a totalidade de seu esplendor e beleza, ou mesmo de seu horror e assombro; ainda que não consigamos explicar ou traduzir em palavras o que ela é em si mesma.
Hugo Guimarães
Obrigada🙏
Não conhecia o Hugo antes do lançamento da Revista, que textos profundos e Almados. Parabéns e obrigada!