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Sobre a Sombra - Hugo Guimarães

Atualizado: 11 de fev. de 2021




“Infelizmente, não se pode negar que o homem como um todo é menos bom do que ele se imagina ou gostaria de ser. Todo indivíduo é acompanhado por uma sombra, e quanto menos ela estiver incorporada à sua vida consciente, tanto mais escura e espessa ela se tornará. Uma pessoa que toma consciência de sua inferioridade, sempre tem mais possibilidade de corrigi-la" (C.G. Jung - OC XI/I)


Em tempos onde adotamos por hábito a utilização do termo “tóxico” especialmente para descrever certas relações interpessoais caracterizadas por abusos e violências de toda espécie, a advertência dada por Jung permanece não somente atual, como extremamente necessária. Pensar no mal como algo que também me pertence, intimamente, é algo sempre perturbador e desagradável, no entanto, conhecer o próprio mal me parece um passo importante e um grande divisor de águas na caminhada do indivíduo que busca o conhecimento verdadeiro de si mesmo.


Para aqueles que se abrigam sob a abóbada de alguma doutrina espiritual, talvez haja uma sacralidade em certos valores, princípios e virtudes que apareçam em seu horizonte e o orientem na vida cotidiana, já para os de temperamento filosófico mais laico, talvez isso apareça como uma profunda sensibilidade política diante do agir ético no mundo. Seja como for, eu, particularmente, concordo que as virtudes são potências necessárias e transformadoras, e não há dúvidas de que a construção de um ambiente que estimule de verdade o seu florescimento seja um ideal sempre importante de se ter em vista, um sonho que, como coletividade, devemos sempre estar buscando concretizar, a todo momento. A questão colocada por Jung acerca do mal vai mais fundo e mergulha em um dos paradoxos que caracterizam a condição humana: o ser humano é simultaneamente bom e mau.


Para Jung, o mal é uma realidade própria e atuante, não somente uma ausência de bem. Outra de suas importantes declarações a este respeito foi feita na entrevista realizada à BBC de Londres, na qual afirma que o único perigo existente no mundo é a psique do homem. A constatação a qual ele chegou ao longo de sua vida foi a de que há um fator psíquico inconsciente (que ele chamou de sombra) que age no homem o levando constantemente a caminhos indesejáveis e conduzindo seus atos a consequências funestas e muitas vezes trágicas. A sombra é uma realidade que vai muito além dos assim chamados “defeitos” da personalidade de alguém, muito embora também inclua estes aspectos, mas é aquilo que leva o homem a se contradizer em sua vida concreta, que o leva a falhar lá onde ele mais sonha em ser bem sucedido, que o leva a quebrar a cara, a se desiludir consigo mesmo e com o mundo, trazendo um sentimento intenso de humilhação e inferioridade. Em suma, poderíamos dizer que a sombra é a dimensão da personalidade que aos olhos do ego gera uma percepção de um profundo autodesconhecimento. Diante da percepção dessa dimensão, nossa reação inicial costuma ser a de negar que somos este horror ou a de fugir e agir como quem tenta manter as aparências de uma bondade falsificada e frágil. Quando nem sequer percebemos que somos capazes de concretamente fazermos o mal e que, vez ou outra, de fato o fazemos, tendemos a viver a vida projetando este mal em alguém, seja em pai e mãe, marido ou esposa, no vizinho, no grupo religioso x ou y, nos que adotam esta ou aquela perspectiva ideológica e filosófica, e por aí vai. Em algum outro momento das obras completas, Jung chega a mencionar o benefício que seria se o homem tomasse consciência da própria culpa. Conhecer a própria culpa é tomar consciência do peso que se carrega e se responsabilizar pelas consequências reais de seus atos.


A impressão que me passa, ao meditar sobre esse tema pela ótica de Jung, é que fica implícita uma certa noção de uma justa medida ao homem, de forma que seria uma verdadeira transgressão tanto o homem ser algo inferior a si mesmo, se entregando ao que há de mais sombrio de suas tendências e potências internas, bem como a tentativa de ser algo superior às suas próprias capacidades éticas e morais, como se estivesse imitando um modelo de santidade que na realidade crua e verdadeira de sua condição, se mostra ser algo inalcançável. É como se fosse um bem superior o homem ter a coragem de se aceitar profundamente enquanto humano e viver sua vida nas medidas exatas de quem ele é, o que implica necessariamente na integração e aceitação, em alguma medida, da realidade da sombra.


O caminho de autoconhecimento trilhado pelas vias da psicoterapia em algum momento vai esbarrar na questão concreta da sombra e nos embates daí sucedidos na busca do indivíduo por entender quais são os momentos, as situações e as relações nas quais a sua sombra tem atuado mais livremente. Quanto maior for o discernimento que o indivíduo conseguir obter nessas contendas dentro de si, quanto mais consciência ele adquire de sua sombra, de sua inferioridade, maiores são as suas possibilidades de não ser simplesmente tomado por ela e acabar sendo levado a agir de maneira inconsciente e desastrosa.


Hugo Guimarães

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