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Tolice é viver a vida sem aventura - Débora Vieira



"Se apenas agirmos com cuidado e proteção na vida, nunca chegaremos a saber quem somos; a vida é para ser vivida na totalidade se quisermos nos tornar íntegros, e é melhor sermos perdoados do que sermos auto-justificados" (O Mal – John A. Sanford).


"Os loucos tinham então uma existência facilmente errante. As cidades escorraçavam-nos de seus muros; deixava-se que corressem pelos campos distantes, quando não eram confiados a grupos de mercadores e peregrinos" (História da Loucura – Michel Foucault).


Errar é humano, segundo o famoso ditado atribuído a Santo Agostinho. E, segundo a cortante lâmina da razão humana, aqueles que erram devem ser apartados para bem longe, em nome da segurança e proteção das sociedades ditas civilizadas.

O ideal da racionalidade sugere que os indivíduos, para usufruir do pleno direito à humanidade, devem ser capazes de seguir uma ordem pré-estabelecida – tal como números. Cotidianamente ordinários e impessoais, os números são, por excelência, sinais de exatidão matemática, de previsibilidade, de certezas calculáveis e comprováveis. Os números não erram, diferente de seus pensadores imperfeitos, os tais humanos.

Alguns de nós parecemos caber confortavelmente nessa métrica calculada da razão, outros nem um pouco. Onde esses últimos poderão ser acolhidos em toda sua errância, afinal?

O Tarô – essa arte que, desde a Idade Média, mistura o lúdico com o divinatório, o mundano com o espiritual – reserva um espaço mais do que nobre para essa parcela renegada de nós mesmos. Entre suas cartas de maior prestígio, temos O Louco – o único Arcano Maior que não recebe um número.

Sem número, sem referência, tanto faz se 0 ou 22, tanto faz se início ou fim. O fato é que O Louco não está aqui para acertar; O Louco é um errante, afinal. Sem lenço e sem documento, lá se vão ele e a trouxa – substantivo ou adjetivo?

(Imagem: O Louco, Tarô Rider-Waite)


Sendo trouxa, O Tolo (do inglês The Fool, outro de seus possíveis nomes) nos remete à ingenuidade, à inexperiência. O tolo é aquele que não sabe, não conhece, não desconfia. Como uma delicada rosa branca, ele ainda não tem as máculas necessárias para tanto. Como uma criança, ele ignora perigos e leis, inclusive a da gravidade. Sua cabeça é de vento, como sugerido pela raiz etimológica de fool, que é a mesma de fole – sopro, ar. Ele está bem no alto do abismo, perto do céu mas de costas para o sol, porque de lá sua queda será maior e melhor.

Sendo louco, o Arcano sem número pode ser aquele que não tem sentido aos olhos do outro. E bem sabemos que boa parte da trágica aventura humana na terra é buscar que sentido a vida tem. O Louco talvez não tenha sentido porque, como todos nós, ele está em busca de um que seja realmente seu. Indiferente ao dano e ao ridículo, ele dá as costas ao pequeno animal doméstico que lhe rasga a roupa, como se o ignorasse.

Sua roupa, aliás, sugere que aquela vida servindo como cachorro bobo de alguma luxuosa corte ficou para trás. De nada serve a sabedoria de um Bobo a um Rei tolo demais para ouvir. Os cães ladram, O Louco passa. É o som dos próprios guizos que agora lhe guiam os passos recém-nascidos.


(Imagem: O Louco, Tarô de Marselha)


O tema do andarilho maltrapilho com a trouxa nas costas é muito ecoado em diferentes épocas da nossa cultura, servindo de mote para diversas produções artísticas. Aqui nos interessa a última tela que Hieronymus Bosch pintou, conhecida como “O filho pródigo”. Nela, vemos um homem de aparência humilde e roupas gastas, com sua bagagem, se afastando de cães e de um cenário decadente. As semelhanças entre a imagem de Bosch e a iconografia do Arcano sem número são muitas. E, para quem busca meditar sobre as sabedorias engendradas n´O Louco do tarô, a parábola bíblica que dá nome à obra de Bosch se revela um caminho fértil.


(Imagem: The prodigal son. Ultima tela de Hyeronimus Bosch. Cerca de 1500)


A Parábola do Filho Pródigo conta de um sábio camponês que tinha dois filhos. Sonhando com uma vida além dos limites do campo, o mais jovem insiste ao pai que lhe adiante sua parte da herança, para que ele pudesse fazer sua vida na cidade. Sem nenhuma experiência com números e supondo que sua pequena trouxa de moedas fosse um tesouro infinito, o jovem se deslumbra com as novidades e em pouco tempo gasta tudo o que herdou, desperdiçando com futilidades e prazeres fugazes. Sem mais a trouxa de ouro, o tolo finalmente experimenta a privação e o desamparo. Então, como um cão verdadeiramente arrependido, ele retorna à casa de seu sábio pai, que o recebe com perdão e grande festa. O filho mais velho, no entanto, se ressente daquela calorosa recepção. Obediente, ele jamais ousou transgredir um único mandamento do pai e, mesmo assim, nunca fora celebrado ou gratificado da forma como seu irmão irresponsável estava sendo. Ao se queixar, escuta de seu pai: “Meu filho, tu estás sempre comigo, e tudo o que é meu é teu. Era preciso que festejássemos e nos alegrássemos, pois o teu irmão estava morto e tornou a viver; ele estava perdido e foi reencontrado!”

Tal como o prudente irmão mais velho, nosso lado racional condena e desmerece o nosso Louco – nosso impulso de vida que deseja ousar e se jogar nos sombrios abismos do desconhecido. O cumprimento das regras e o zelo pela conformidade não são suficientes para a realização de um indivíduo em sua totalidade; Há que se lidar com a sombra. O tolo, o excluído, o desamparado precisam de amplos espaços à luz solar da consciência, por onde sabiamente possamos desviar, nos perder e nos reencontrar, inúmeras vezes... não importa se no início ou no fim da jornada.

De erro em erro, O Louco vai se tornando cada vez mais aquilo que ele é: Humano.


Débora Vieira é arteterapeuta, graduada em letras, especialista em literatura infantil e juvenil; sendo também taróloga e facilitadora de SoulColage®.

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